A princípio, a empresa possui autonomia patrimonial, ou seja, é possível imputar responsabilidades pelas obrigações decorrentes da atividade empresarial à sociedade, pessoa jurídica distinta de seus membros. Assim, a responsabilidade do sócio limitar-se-á às obrigações assumidas no contrato social.
Contudo, esta regra não é absoluta. O Código Civil prevê que nos casos em que se verifica o abuso da personalidade jurídica, consubstanciado no desvio de finalidade ou confusão patrimonial, respeitando-se o devido processo legal, pode ocorrer a desconsideração da personalidade jurídica, em que os bens particulares dos sócios e administradores responderão pelo débito da empresa. Já o Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 28, parágrafo 5º, estabelece que poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica, sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos causados aos consumidores.
1 – Origem
A maior parte da doutrina remonta que o instituto teve sua origem na Inglaterra, em 1896.
O empresário Salomon, tinha uma empresa que acumulou dívidas que superavam seu patrimônio. Então, Salomon transformou sua empresa individual em uma empresa de sociedade anônima – Salomon & Salomon, e incluiu 6 sócios familiares, tornando-a uma pessoa jurídica de responsabilidade limitada.
Após certo período, Salomon encerrou as atividades da empresa, com dívidas. Os credores constataram o esgotamento patrimonial da sociedade e que a responsabilidade dos sócios era limitada.
Entretanto, verificou-se o intuito de Salomon, ao constituir a empresa para fraudar os credores, configurando, assim, abuso da autonomia da pessoa jurídica. Além disso, Salomon detinha 99% das ações, tornando os outros sócios meros figurantes.
Destarte, foi inaugurada a doutrina da desconsideração da legalidade da entidade (“Disregard Of The Legal Entity”), permitindo-se o alcance do patrimônio dos sócios para saldar as dívidas da empresa. Neste caso específico, o juiz não desconstitui a sociedade, apenas retirou a eficácia do ato constitutivo em relação aos credores que assim solicitaram.
Houve interposição de recurso e o Tribunal de 2ª Instância reformou a decisão, fundamentada na preservação da segurança jurídica da autonomia da pessoa jurídica de responsabilidade limitada e, que a empresa havia sido validamente constituída.
Desse modo, a teoria se difundiu e foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro, inicialmente pelo Código de Defesa do Consumidor e posteriormente, pelo Código Civil de 2002.
2 – Recente entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça
Recentemente, o STJ julgou o REsp nº 1860333 – DF, acerca do incidente de desconsideração da personalidade jurídica.
Trata-se, em sua origem, de agravo de instrumento contra decisão interlocutória que estendeu a responsabilidade pelo pagamento do objeto da execução à empresa (pessoa jurídica) e aos administradores da executada.
O Tribunal de Justiça declarou que sempre que a personalidade da pessoa jurídica for obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos causados aos consumidores, caberá sua desconsideração, e alcance dos bens particulares dos sócios e administradores (não sócios). Opostos embargos de declaração, estes foram rejeitados.
Nas razões do recurso especial, os recorrentes apontaram violação do parágrafo 5º, do artigo 28, do Código de Defesa do Consumidor, que não se aplicaria aos administradores não sócios, e a ausência de comprovação dos requisitos contidos no artigo 50, do Código Civil.
Ao prolatar seu voto, o Ministro Relator Marco Buzzi explicitou a diferença da teoria maior, prevista no Código Civil e a teoria menor, expressa no Código de Defesa do Consumidor.
Segundo a teoria maior, no caso de abuso de personalidade jurídica, existe a possibilidade de se estender determinadas obrigações da empresa aos sócios e administradores. Contudo, além de se demonstrar a insolvência da empresa, é necessário comprovar o desvio de finalidade e efetiva confusão patrimonial.
A desconsideração da personalidade jurídica disciplinada no Código de Defesa do Consumidor, contempla em seu “caput” requisitos mais rígidos, como abuso de direito, excesso de poder, prática de ato ilícito, entre outros, aproximando-se da teoria maior. No entanto, seu parágrafo 5º, prevê a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica, sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos causados aos consumidores, portanto, não se subordina à demonstração dos requisitos previstos em seu “caput” – teoria menor.
Ocorre que, inexiste previsão específica no parágrafo 5º, do art. 28, CDC referente à possibilidade de responsabilização do administrador que não integra o quadro societário da pessoa jurídica.
Assim, tendo o caso apreciado decorrido de desconsideração da personalidade jurídica com base no art. 28, parágrafo 5º, do Código de Defesa do Consumidor, em razão da ausência de bens penhoráveis da executada, e não tendo sido demonstrada a ocorrência de qualquer abuso, excesso ou infração ao estatuto social ou à lei, o recurso especial foi provido, afastando os efeitos da desconsideração da personalidade jurídica em relação aos administradores não sócios.
Considerando a especificidade do parágrafo 5º, do art. 28, do Código de Defesa do Consumidor e as consequências decorrentes de sua aplicação (extensão da responsabilidade obrigacional), entendeu-se pela inviabilidade de inserção de uma interpretação extensiva do art. 50, do Código Civil, especialmente, quanto ao atingimento do patrimônio do administrador não sócio.
No mesmo sentido: REsp nº 1.862.557/DF e REsp nº 1.658.648/SP.