Dr.ª Elizângela Sayuri Tateishi
O direito à filiação e a garantia de que todos os aspectos da paternidade sejam reconhecidos são questões fundamentais no ordenamento jurídico brasileiro. Nos últimos anos, o conceito de **paternidade** deixou de ser exclusivamente biológico, passando a abranger também a **paternidade socioafetiva** — aquela construída pelo vínculo afetivo, independente do laço sanguíneo. O reconhecimento da paternidade biológica e socioafetiva no registro civil tornou-se um tema importante, especialmente com o avanço das decisões judiciais e as mudanças normativas que refletem as novas dinâmicas familiares.
O Que é Paternidade Socioafetiva?
A **paternidade socioafetiva** é um conceito que reconhece o papel exercido por uma pessoa que, sem ser o genitor biológico, desempenha as funções de pai ou mãe ao criar e cuidar de uma criança. Esse tipo de paternidade está baseada no **afeto** e na **convivência familiar**, e não na genética. A socioafetividade valoriza o que se chama de “posse de estado de filho”, ou seja, quando a pessoa é tratada e reconhecida como filho por todos ao redor, incluindo familiares e sociedade, independentemente da origem biológica.
O Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já firmaram o entendimento de que a paternidade socioafetiva deve ser reconhecida e protegida, tendo os mesmos efeitos legais da paternidade biológica.
Paternidade Biológica: O Direito ao Reconhecimento
Por outro lado, a **paternidade biológica** é o vínculo natural entre pai e filho, determinado pela relação genética. A busca pelo reconhecimento da paternidade biológica é um direito garantido pela Constituição Federal, que assegura a todos o direito de conhecer sua origem e ter a paternidade reconhecida.
Essa questão é particularmente sensível nos casos em que o reconhecimento da paternidade biológica é feito após a consolidação de uma relação socioafetiva com outra pessoa que, muitas vezes, já foi registrada como pai ou mãe no registro civil.
O Reconhecimento Conjunto da Paternidade Biológica e Socioafetiva
Atualmente, o reconhecimento da **paternidade biológica e socioafetiva de forma conjunta** já é possível no Brasil. Essa possibilidade foi regulamentada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) através do **Provimento n. 63/2017**, que trouxe novas diretrizes para o reconhecimento de paternidade socioafetiva diretamente no cartório, sem a necessidade de intervenção judicial.
De acordo com o provimento, é possível que uma pessoa tenha **duas paternidades ou duas maternidades** registradas no assento de nascimento: uma biológica e outra socioafetiva. Isso reflete a pluralidade familiar contemporânea, que não se restringe à filiação exclusivamente biológica, permitindo que ambas as paternidades coexistam no registro civil.
A coexistência de ambas as paternidades no registro de nascimento reforça o princípio do **melhor interesse da criança** e do adolescente, que está no centro do ordenamento jurídico brasileiro. Assim, uma pessoa que foi criada por um pai ou mãe socioafetivo, mas que, posteriormente, descobre ou busca o reconhecimento do genitor biológico, pode ter os dois pais ou as duas mães reconhecidos no registro civil, sem a necessidade de excluir um vínculo para incluir o outro.
Procedimento de Reconhecimento no Registro Civil
O reconhecimento de paternidade biológica e socioafetiva pode ser realizado diretamente no cartório de registro civil, desde que sejam respeitadas algumas condições. Para o reconhecimento da paternidade socioafetiva, é necessário que:
1. **O vínculo de afeto seja comprovado**: O interessado deve demonstrar que existe uma relação de convivência familiar com o filho, baseada no afeto, na posse de estado de filho e no exercício da função parental.
2. **Consentimento mútuo**: O reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva deve contar com o consentimento tanto do pai ou mãe socioafetivo quanto do próprio filho, se este for maior de 12 anos.
3. **Inexistência de oposição**: Se já houver um vínculo parental estabelecido, a outra parte envolvida (genitor biológico ou outro genitor registrado) não pode se opor, salvo quando comprovada a intenção de garantir o melhor interesse do filho.
Para o reconhecimento da **paternidade biológica**, o processo pode se dar de forma consensual ou mediante ação judicial de investigação de paternidade, quando o genitor se recusa a reconhecer o vínculo. A investigação de paternidade envolve a realização de exames de DNA, que são considerados a principal prova para estabelecer a paternidade biológica.
Os Direitos e Deveres Oriundos do Reconhecimento
Tanto a **paternidade biológica** quanto a **paternidade socioafetiva** geram direitos e deveres para as partes envolvidas. A partir do momento em que o vínculo parental é reconhecido, o pai ou a mãe, biológico ou socioafetivo, passa a ter as mesmas obrigações, como:
– **Dever de sustento**: A obrigação de prover o sustento, incluindo a possibilidade de pagamento de pensão alimentícia.
– **Direito à convivência**: O direito de manter contato regular com o filho, seja através da guarda compartilhada ou do regime de visitas.
– **Dever de cuidado**: A responsabilidade de zelar pelo bem-estar físico, emocional e moral da criança ou adolescente.
– **Direito à herança**: O reconhecimento da paternidade garante ao filho o direito de herdar o patrimônio do pai ou mãe, seja ele biológico ou socioafetivo.
Pluralidade Parental e o Melhor Interesse da Criança
A possibilidade de coexistência de paternidade biológica e socioafetiva no registro civil é uma grande evolução no direito brasileiro, refletindo as novas configurações familiares. Isso demonstra que o foco do direito de família está cada vez mais no **afeto e na proteção dos interesses das crianças e adolescentes**, garantindo-lhes o reconhecimento de todas as figuras parentais que exercem ou exerceram funções de pai ou mãe em sua vida.
A pluralidade parental reconhecida pelo ordenamento jurídico brasileiro promove a inclusão e a valorização dos diferentes tipos de famílias, assegurando que os laços de afeto tenham proteção legal equivalente aos vínculos biológicos.
Conclusão
O reconhecimento conjunto da paternidade biológica e socioafetiva no registro civil é um marco importante no direito de família brasileiro, refletindo a complexidade e a diversidade das relações familiares contemporâneas. Com isso, é garantido que tanto o pai biológico quanto o pai ou mãe socioafetivo possam coexistir no registro de nascimento, resguardando os direitos da criança e proporcionando maior segurança jurídica às famílias.
Esse avanço legal é uma demonstração de que o direito brasileiro está em constante evolução para acompanhar as mudanças sociais, priorizando sempre o **melhor interesse da criança e do adolescente**.
Ref. Processo: 1001830-75.2023.8.26.0390